Quando fui a Campo Grande-MS, conheci um caboco sábio no ritual do
tereré (famoso chimarrão gelado) e na feitura do paiero.
Pedro é jornalista, agrônomo, gente finíssima e pai da Letz
do coletivo Bigorna, que me deu uma mão por lá.
Semana passada ele me mandou a crônica que segue abaixo.
Desfrutem. É ciência de prima.
Obrigado Pedro!
AssimAssado
CIGARRO DE PALHA
Por: Pedro Spindola – Téc. agrícola e jornalista
A feitura e o consumo de um cigarro de palha é um ritual complexo, de uma beleza e de uma plasticidade indescritíveis. Merece um documentário.
Um bom “paeiro” exige tempo, talento, dedicação e um bom canivete (na falta deste, uma faca bem amolada).
O começo de tudo é a palha ou, como diz o caboclo, a paia. (ele-agá não existe na língua das fazendas; é orvaio, tuia, ôio, pia (de lanterna), brio (do sol), rêio, véio, agúia, fornaia, rusio e uma que é uma pérola: é uma palavra de 5 letras, 3 sílabas e todas vogais. O que é, o que é? É aiêio (a-i-ê-i-o), ao invés de alheio.)
A palha, ou está na “gibeira” de trás ou tem que ser escolhida no paiol.
Não se faz pito em pé; tem que ser sentado. De preferência no batente da porta da frente.
A palha é então trabalhada paciente e meticulosamente. Primeiro, cortada no tamanho, que varia de pessoa para pessoa. Depois é amaciada cuidadosamente com a lâmina do canivete, dobrada, de um lado, do outro, entre uma, duas, ou no máximo três lambidas, que vão conferir a textura ideal. Palha pronta, ela é estrategicamente colocada entre o indicador e o anelar, ficando com as pontas pra fora.
O fumo é retirado do bolso da frente da calça e vai parar entre os dedos polegar, indicador e máximo, da mão esquerda – se o cara for destro – onde já aguarda, macia e preparada, a palha.
Da cintura sai o canivete que, ao ser aberto, é passado de um lado e do outro na perna da calça, entre o joelho e o tornozelo, afim de retirar qualquer sujeirinha, que possa comprometer a qualidade do produto final. (É preciso este cuidado pois esse canivete descasca fruta, corta unha, tira bicho de pé, castra porco, raspa casco de cavalo e executa outras tarefa menos cotadas.)
Preparado, o canivete começa a ser manipulado com precisão cirúrgica, retirando do fumo “capoeirinha”, de Goiás, considerado o melhor, finas camadas, sempre rodando o pedaço.
Atingida a quantidade ideal, que varia de acordo com o gosto de cada um, o fumo passa por um processo de separação. À unha, é todo espinicado, ficando meio fofo e com um volume bem maior. Neste ponto ele é vigorosamente friccionado entre uma mão e outra, se aglutinando todo novamente, virando uma bolinha. E aí é o momento mágico: aquela bolinha, na palma da mão esquerda, ganha vida. Começa a se expandir, expandir, ficando, novamente, separadas as fibras. Neste momento, os conhecedores da arte de fazer um bom cigarro de palha, identificam se o fumo é bom mesmo. Dizem.
O fumo é então, cuidadosamente, espalhado na palha e enrolado com maestria. (Mulheres e rapazinhos geralmente não dão conta…). Uma pequena dobra na ponta não permite que o cigarro desenrole.
Aí é só acender. Se o fumante estiver em casa, vai na cozinha, toma gole de café e acende no tição do fogão a lenha.
Se não, usa a binga, daquelas de pavio e abastecida com gasolina, ou o isqueiro, que nada tem a ver com o que hoje chamamos de isqueiro, é sim um simples pedaço, da ponta de um chifre, dentro do qual vai a isca (daí o nome), que é um pedaço de algodão semi-queimado. A fricção de um pedaço de lima velha contra um pedaço de pedra-de-fogo produz umas faiscas que acendem o algodão, permitindo assim acender o pito. É só tampar que o fogo apaga.
Nunca vi ninguém acender com fósforo.
Por qualquer método que se acenda, uma coisa faz parte do ritual: bater, de leve, a unha do polegar, da mão esquerda, na brasa do paiero, para firmar o fogo.